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Inclusão e resgate: coletivo skatista leva artes e esportes para crianças e adolescentes no extremo leste de São Paulo

Cidade Tiradentes, distrito localizado no extremo leste da capital paulista, é conhecida por abrigar o maior complexo habitacional da América Latina: De acordo com o site da prefeitura, são cerca de 40 mil unidades construídas nos anos 80 pela COHAB, CDHU e empreiteiras privadas.

Antes uma fazenda industrial, foi planejada para servir de "dormitório" periférico para que os moradores tivessem onde morar enquanto de dia se deslocassem para seus empregos na região central. Sua população é de mais de 211 mil habitantes (censo 2010) e devido à alta densidade populacional, além dos conjuntos habitacionais existem centenas de ocupações e favelas em seus entornos. De acordo com o mesmo censo, mais de oito mil famílias no local se encontram em situação de alta vulnerabilidade social.

Uma pesquisa de 2017, realizada pela ONG rede Nossa São Paulo, chegou a comparar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos moradores de Cidade Tiradentes com os do povo de Serra Leoa, na África, um dos mais baixos do planeta. Lá, se morre até 23 anos mais cedo do que nos chamados 'bairros nobres' paulistas como Alto Pinheiros, na região Sul.

O bairro não possui estação de trem, metrô e nenhuma Universidade. Considerado por muitos um lugar de passagem e não destino, com poucas oportunidades de lazer e emprego.

Sem apoio do Estado, os moradores do distrito e de seus arredores criam suas próprias formas de resistência e sobrevivência, sendo o Love CT apenas uma delas.

Por volta das 15 horas de uma quinta feira ensolarada, um grupo de mais de 20 crianças das mais diversas idades conversa em frente ao CEU Inácio Monteiro enquanto carregam seus equipamentos para uma pista de Skate estilizada. A animação se mistura a disciplina enquanto Marcelo Martins, diretor da ONG e instrutor do esporte, os auxilia em seus alongamentos e manobras.

Eles são os alunos do coletivo 'Love CT inclusão e resgate', projeto criado por um grupo de amigos skatistas em 2011. Oferecem, as terças, quintas e sábados, aulas de Skate, informática, saraus e exposições de arte. Em outros anos já houve aulas de literatura, teatro e inglês, a programação anual varia de acordo com a quantidade de voluntários.

“A gente criou esse espaço pra honrar a Cidade Tiradentes e o povo daqui, por isso o nome do coletivo é 'Love CT', amor a Cidade Tiradentes." afirma Claudio 'Cal' Gomes, 35, técnico de Som e responsável pelo Sarau.

O projeto começa com uma união de vivencias periféricas: Marcelo Martins, 36, nascido e crescido em Cidade Tiradentes, é skatista profissional e enquanto ajudava na realização de um documentário sobre o esporte na região ("Love CT: revolução periférica", 2010) uniu-se com os outros skatistas e começaram juntos a formular a ideia de auxiliar as crianças, que começou com aulas na rua e evoluiu ate a criação da sede.

"Aqui cada um faz um pouco de cada coisa, mas a minha principal função é a de angariar fundos: faço contato com empresas, busco parcerias, cuido da papelada para deixar a ONG totalmente profissional.” explica Robson Souza, de 38 anos. Ele se uniu ao coletivo um ano depois da formação original. É amigo de infância de Marcelo e sentia necessidade de mudar de carreira, quando decidiu estudar gestão cultural e marketing na intenção de ajudar nas necessidades 'burocráticas' do 'Love CT', como a legalização da ONG e a busca por patrocinadores.

Elton Melonio, 31, era um skatista amador quando ajudou na fundação dando aulas. Durante a entrevista está se preparando para uma viagem ao Rio de Janeiro: Se profissionalizou ao longo dos anos e esta disputando por uma vaga nas Olimpíadas.

Sobre a inspiração para criar o projeto, afirma: “Nossa vontade de criar o coletivo foi a de ajudar o próximo. Sabemos que Skate é um esporte caro, e queríamos poder ajudar: seja dando um alimento, seja dando uma aula, seja ajudando com uma peça. O que mais queríamos no nosso coração era ajudar a comunidade.".

O financiamento para parte do projeto veio do programa VAI I e VAI II, que são fomentos do governo estadual a produções culturais, sendo com esse dinheiro que a sede do coletivo foi criada. Os desafios, entretanto, continuam: os voluntários precisam equilibrar suas vidas pessoais com o projeto já que não recebem nenhum tipo de salario para estar ali. Alguns acabam tendo uma dupla jornada, trabalhando fora para conseguirem pagar as próprias contas e manter o coletivo funcionado.

"Pra mim, individualmente, não vale a pena estar no coletivo: Às vezes chego aqui as oito da manha, saio só as cinco pra ir pra universidade e chego a casa quase meia noite. Ensino essas crianças num tempo que poderia estar com meu filho, por exemplo. Sacrifiquei um projeto que tinha de uma loja de Skate pra estar aqui, porque precisei escolher entre ter tempo pra ser empresário ou ser voluntário." Marcelo Martins, diretor e um dos fundadores.

"Escolhi estar aqui não pelo meu bem individual, mas sim pelo bem coletivo: posso estar sacrificando ter mais dinheiro no fim do mês, dói para pagar as contas, mas estamos aqui ajudando essas crianças a terem uma vida diferente." continua.

Nenhum dos voluntários consegue apontar um momento mais marcante na história do coletivo. Para todos eles, o mais importante é o dia-a-dia, a evolução de cada criança ao longo dos anos e o que o projeto pode significar para a formação delas.

“Eu seria incapaz de escolher uma história porque em todos os momentos são centenas de histórias e universos. Acaba que no fim a história é uma só: a história do 'Love CT'." diz Cal Gomes.

A "aluna" mais nova do curso é Jasmine, uma bebe de dois anos cuidada por seu pai, o também voluntário e Skatista Anderson Lucas, de 32 anos. Com apoio dele, ela já se equilibra no skate por alguns metros e com total naturalidade ate imita alguns alongamentos das outras crianças.

Quando seu pai ajuda um aluno a consertar uma prancha de Skate, ela esta ao lado observando atentamente enquanto ele estiliza tudo com tinta Spray. “Sempre que posso trago ela”, comenta “Ela gosta demais de tudo.".

Existe no coletivo a necessidade também de apoio as pautas feministas: Marcelo sempre faz questão de reforçar que o Skate é para todos e cita o exemplo de Ana, uma aluna de 11 anos, que chegou há apenas três meses durante suas ferias escolares, porem decidiu ficar no coletivo e incentivar os outros. Inspirada pelo Sarau, ela também passou a tocar violão e fazer composições próprias.

Outra aluna Vitoria, chamada de 'Vi' pelos alunos e instrutores, tem apenas nove anos e se oferece para me mostrar uma de suas manobras para um vídeo, sobe no skate, desce um trecho, cai, se levanta e tenta novamente, dessa vez com êxito e sempre sorrindo.

Atualmente o coletivo tem em torno de 15 meninas, dos quase 50 alunos que comparecem regularmente.

A ideologia do coletivo evita ao máximo incitar competição entre os alunos: De acordo com Marcelo, o importante é aprender e evoluir no seu próprio ritmo. Por isso, provavelmente, é que Vitoria não sente nenhum receio ao ter errado a manobra e a realizou novamente com muito mais confiança. Todos treinam juntos focando em melhorar por si mesmos e não 'superar' alguém em especifico.

''Cal' Gomes, nascido em Vila Cosmopolita, frequentava vários Saraus pela região ate se envolver com o 'Love CT' e trazer a leitura de poesias para o coletivo: “A gente tem a necessidade de mostrar pras crianças que o skate é importante, mas existem muitas outras coisas que também são. Nosso principal objetivo é abrir a visão deles, da mesma forma como a nossa foi aberta. Ajudar eles a se soltarem com as palavras e na vida.".

Hoje ele é o 'mestre de cerimonia' do Sarau Love CT, realizado sempre após as aulas com leitura de poesias e apresentações musicais pelos alunos.

A sede da ONG é praticamente um projeto arquitetônico, feito no estacionamento do CEU Inácio Monteiro que antes era uma base policial abandonada e depredada desde 2007.

Na entrada, uma trepadeira plantada pelo grupo formou uma espécie de cobertura natural e é nesse lugar onde os Saraus são realizados. No lado de dentro, a exposição atual, chamada 'Raízes', criada pelas artistas Lais da Lama e Ju Costa, homenageia as mulheres latino-americanas e caribenhas.

O projeto nunca teve um arquiteto especifico: seus voluntários e as pessoas que apoiavam sua criação foram dando ideias, ajudando, trazendo material como podiam ate que a sede se tornasse o que é.

Todo o local é grafitado por artistas periféricos. Do lado de fora, bancos de praça e até a iluminação foram preparados pelos membros do coletivo.

Após conseguirem fomento do VAI e a concessão do CEU para utilizar o lugar, aos poucos os voluntários e apoiadores do projeto foram conseguindo a revitalização, cada um como conseguia ajudar ao longo dos anos.

A melhora na qualidade de vida foi tanta que o ponto final dos ônibus que atendem a região de Prestes Maia, onde fica a sede do coletivo, foi mudado para ficar atrás da ONG. Nas palavras de Marcelo “Claro que antes do 'Love CT' tinham assaltos aqui: Muitos carros de professores do CEU foram roubados. Era porque não tinha gente, estava abandonado. Se você ocupa, a violência diminui.".

Um dos desafios atuais do grupo é que esse espaço, agora chamado de "casinha" pelas pessoas da região, fique sendo somente a sede do projeto e o grupo consiga um espaço maior para as aulas. Além disso, eles buscam por patrocinadores.

Quando perguntado como o Skate ajuda os jovens, Marcelo aponta diversos benefícios:

“A gente fala que o skate salva: ele afasta do crime porque a primeira coisa que ele te ensina é a amar e se esforçar pela liberdade. Ele te ensina artes plásticas porque quando você vai aprendendo, percebe que cada skatista tem seu próprio estilo, suas próprias manobras. Ele te ensina saúde porque é uma atividade física de equilíbrio e empoderamento porque quanto mais você aprende mais capaz você se torna. Na periferia você é invisível, mas através do skate você percebe que é único."

De acordo com o historiador e professor Marcio Reis, cujo TCC foi “A formação do bairro Cidade Tiradentes", as três principais carências históricas do bairro são: violência, qualidade de vida e transporte.

O índice de violência abaixou na década de 2000 devido à atuação do crime organizado, sofrendo agora um novo aumento. O comércio tem chegado aos poucos na região (Um restaurante da rede 'Mcdonald’s' passou a operar dentro do estacionamento de um Supermercado no final de Outubro), O hospital geral tem problemas de falta de médicos e superlotação, a maioria das escolas não tem estrutura para tantos alunos, o que afeta na qualidade de vida.

"Os Coletivos em geral, estão diretamente ligados com a Pobreza, porque eles se iniciam por uma visão diferente da do sistema. Aonde tem a Miséria, vai haver gente querendo transformar a vida das pessoas" afirma.

Para o professor, o maior problema é a dificuldade no transporte: devido à ausência de trens da CPTM e Metro, a única solução acaba sendo andar de carro, recurso caro que pode causar congestionamentos ou utilizar ônibus que acabam sendo insuficientes para a demanda e estão quase sempre lotados. As chamadas 'bicicletas do Itaú', alugáveis, chegaram a pouco mais de dois anos e são utilizadas principalmente pelos jovens para passeios na própria região.

Por toda essa bagagem histórica, o bairro acaba sendo "isolado" do resto da capital, com o trajeto ate o Anhangabaú, por exemplo, levando quase duas horas. Os planos do governo do Estado de São Paulo de trazer a linha 15 Prata do Monotrilho para o bairro estão paralisados a mais de Cinco anos sem previsão para início das obras.

Sendo assim, os coletivos culturais e esportivos como o 'Love CT' tentam 'cobrir' o buraco deixado no bairro pelo lado governamental, por isso Marcelo e os outros membros do grupo narram diversas dificuldades enquanto os acompanhamos. Os grupos acabam exercendo a obrigação do Estado.

Acompanhamos a palestra que Marcio realizou sobre a história de Cidade Tiradentes para os alunos do 'Love CT': os voluntários consideram importante desde cedo que as crianças tenham acesso os incentivos de educação e pesquisa, para se sentirem inspiradas a continuar estudando no futuro.

Perguntamos ao voluntário Cal Gomes de quais formas as pessoas podem ajudar o coletivo, ele afirma que qualquer ajuda é valida:

“Semana passada doaram algumas roupas e calçados, bem básicos, e demos pra algumas crianças que víamos que não tinham: elas iam pra escola e depois vinham pra aula sempre com a mesma roupa. Um dos nossos voluntários decidiu dar aula de informática pras crianças e conseguiu a doação de alguns computadores. Toda ajuda é bem vinda: skates, roupas, comida, livros. Ajudando as crianças de alguma forma é o que importa."

Marcelo reforçou varias vezes o quanto ele “não gosta” de ser Resistência e considera o que o coletivo faz uma forma de sobrevivência: “Aqui no Brasil vivem falando de meritocracia, enquanto nem dos nossos direitos sabemos. É fácil olhar pra nos e dizer que é bonito estamos resistindo, ninguém para pra pensar é em tudo que temos que deixar de lado pra estar aqui dando o que o Estado deveria fornecer.".

Talvez a melhor forma de transformação dessa realidade, enquanto a classe politica não muda e a população não se informa o suficiente para saber de seus direitos, more em cada coletivo popular, em cada pessoa que se dedica um pouco para passar uma mensagem de esperança e trazer oportunidades a quem precisa.

"Esse espaço não é nosso, é do povo: as exposições, o Sarau, as aulas. talvez um dia eu saia e vá fazer outra coisa, porque sendo sincero, lutar é difícil demais, às vezes dói estar aqui se sacrificando por outras pessoas. Mas o importante é que conseguimos criar esse espaço pro nosso povo contar e se orgulhar da própria história, resgatar sua autoestima." Finaliza Cal Gomes.